Galeria Jaqueline Martins reúne experimentações fílmicas dos anos 1970 na exposição Ruído Branco
Expoentes da vídeoarte são exibidos em mostra organizada pela curadora espanhola Maria Iñigo Clavo
A Galeria Jaqueline Martins orgulhosamente apresenta a exposição coletiva Ruído Branco, com curadoria da artista, pesquisadora e curadora espanhola Maria Iñigo Clavo. Partindo da obra Charades (Charadas, 1976) do artista norte-americano Bill Lundberg, a mostra alude à uma história da vídeo arte a partir dos anos 70. A intenção é traçar paralelos entre cinco artistas de origem e períodos diversos, cujos experimentações provaram-se essenciais na formulação e expressão das novas linguagens da vídeo arte. A exposição apresenta obras que suscitam reflexões a respeito de processos comunicativos, e sobre a fragilidade e as limitações da linguagem e da fala. O fazer lúdico da arte acessa sentidos onde há perda ou quebra de significado, na busca por vias de transmissão que possam interpelar e transcender desacertos e disfunções da linguagem verbal.
Além de Charades, dois outros trabalhos de Lundberg marcam o tom e definem o tema da exposição: Silent Dinner (Jantar Silencioso, 1975-1976) e Ana Freud (2007). Nestas obras, a arte se converte em espaço para transmissão, mas também em jogo, e o artista é o detentor de uma conexão especial com instâncias além do visível e da percepção cotidiana. Charades é um jogo de comunicação, em que as palavras são insuficientes para transmitir a mensagem. Assim, os espectadores são convocados para adivinhar definições da arte transmitidas pelos personagens através de seus próprios gestos. Esse ato está diretamente ligado ao conceito de Bruce Nauman, em que “o real artista ajuda o mundo ao revelar verdades místicas”.
As obras da exposição também invocam idéias em torno do artista como médium, e sobre processos de tradução. O espanhol Javier Codesal apresenta duas obras que tratam do retrato do artista, e de seu papel no ato da comunicação. Codesal iniciou sua prática em vídeo arte na Espanha na década de 80, e sua obra expõe o processo de pesquisa em si, ao tratar de situações sociais e de intimidade. Em Lectura de Manos (Leitura de Mãos, 2002) uma cartomante lê as palmas das mãos do artista. O caráter, a saúde, a inteligência, os defeitos, as histórias familiares, o amor, tudo que vai sendo evocado das mãos compõem uma paisagem e uma novela, além de desferir um retrato diáfano da leitura. O ponto de vista da câmera permite uma identificação do espectador como sujeito da leitura do início ao fim. Um segundo vídeo de Codesal, Lectura de Ibn Guzman (Leitura de Ibn Guzman, 2002) apresenta um homem e uma mulher tentando traduzir um antigo poema andaluz. Ela, de origem marroquina, tem diante de si uma cópia do texto escrito em árabe andaluz; ele, espanhol com conhecimento superficial do árabe clássico, utiliza uma transcrição fonética do próprio poema. A dificuldade de leitura atravessa a relação entre o casal, despertada pelo próprio ato da tradução.
Em Especular (1978) de Letícia Parente (1930 – 1991), artista brasileira pioneira da vídeo arte no país, seus filhos, sentados no chão, um em frente ao outro e ligados por uma espécie de estetoscópio duplo, estabelecem um diálogo especular. A ambiguidade da linguagem e do processo de comunicação, que aqui começa pelo título, transborda entre a tentativa de compreensão do outro, e a acumulação por espelhamento.
Já em Telefone sem fio (Broken telephone, 1976), o grupo de trabalho e reflexão composto por Ana Vitória Mussi, Anna Bella Geiger, Fernando Cocchiarale, Ivens Machado, Miriam Danowski e Paulo Herkenhoff brinca de ‘telefone sem fio’, jogo em que uma mensagem é passada de participante a participante, e que, ao chegar ao último receptador, inevitavelmente tem seu sentido distorcido. Rainer Guldin, um dos principais pesquisadores de Vilen Flusser, estampa o jogo do ‘telefone quebrado’ na capa de seu livro a respeito da tradução como metáfora da fragilidade do ato comunicativo, onde a incapacidade de se comunicar revela a deficiência e as limitações da linguagem verbal. Como em Charades de Lundberg, o jogo Telefone sem fio revela a ausência de uma entidade capaz de mediar esse mesmo ato. Em ambos os casos, somos levados a refletir sobre o lugar da arte como espaço de comunicação.
Na mesma linha, Ana Freud alude às oportunidades perdidas de apreensão de sentido que podem ser cruciais para uma experiência dialógica. Mais uma vez, somos confrontados com uma ausência no processo de comunicação – ou, nas palavras de Anna Freud, com “perder-se e estar perdido”. Na obra Silent Dinner de Lundberg, a projeção sobre a superfície de uma mesa convida o espectador a compartilhar do ritual familiar à mesa de jantar, e do silêncio que envolve a cena.
Em relação direta à conversa de Anna Freud, a obra de arte sonora Me, Foucault and everyone who is listening (eu, Foucalt e todos qye nos escutam, 2013) , da Jovem artista italiana Anna Raimondo, expõe uma (falsa) conversa entre Michel Foucault e a própria artista: utilizando-se gravações da voz do filósofo francês de 1983, Raimondo simula entrevistá-lo a respeito da palavra parresía. O termo, conforme explica Foucault, faz referência a um momento particular em que alguém fala abertamente de suas verdades mais profundas, e remete à coragem, ao destemor de dizer a verdade e oferecer o que é mais sincero sobre si, mesmo sob pena de ser condenado por isso. Tanto Foucault como Anna não falam em seu idioma nativo – referência direta ao processo de tradução e às dificuldades encontradas na comunicação de sentido entre culturas ou idiomas. Conforme descreve Anna, “o trabalho é uma forma de criar diálogo entre o momento presente e o passado, entre vida e morte, entre mim e Foucault e os ouvintes”.
Unindo este círculo, os artistas brasileiros Mario Ramiro (cujas experiências com arte telecomunicativa estão entre as mais bem-sucedidas de sua geração ), e Gabriela Greeb (artista visual e cineasta ) apresentam Rede Telefonia (2009). Nos anos 70, a escritora brasileira Hilda Hilst gravava compulsivamente sinais de rádio buscando se comunicar com amigos e parentes já falecidos. Hilst escolhia um espaço vazio entre duas estações de rádio e registrava em fita o chiado eletromagnético. Conhecido como “ruído branco”, este chiado seria o meio que os “espíritos” utilizariam para entrar em contato com o nosso mundo. O trabalho reúne diversos momentos das pesquisas de captação e escuta da autora, compondo um chamado contínuo por uma resposta ausente. Afinal, o espaço entre o desejo e o ensejo de comunicar-se e a real transmissão de sentido permanece, muitas vezes, intransponível.
Galeria Jaqueline Martins
Rua Dr. Virgílio de Carvalho Pinto, 74, Pinheiros
tel. (11) 2628-1943. Seg. a sex. 12h /19h; sáb. 12h/17h.
Deixe um comentário