Escritor revive Era Collor em livro sobre identidade, memória e tráfico de madeira

“Por acaso memória”, de Carlos Machado, é um livro atual e necessário, mas sem o atalho fácil da urgência imediatista.

Capa / Por Acaso Memória / Divulgação

Desde a sua estreia em 2004, com o volume de contos A Voz do outro, a literatura de Carlos Machado é um jogo de sombras. Seus personagens são homens e mulheres flutuantes, gente à deriva de seu próprio tempo e espaço. Em sua novela mais recente, Por acaso memória (Arte & Letra, 2021, 72 p.), o escritor revisita um momento histórico do Brasil que ainda soa um pouco nebuloso: a Era Collor.

Por acaso memória é uma narrativa singela sobre as ruínas de um homem e de uma mulher cujas vidas foram alteradas bruscamente. Entrincheirados entre a memória e o presente diluído, Olavo e Teresa são um casal à margem da identidade, mergulhados no périplo de uma vida fragmentada pelo invisível. O único enlace com a realidade são as cartas de Joana, a filha que ficou para trás e que ainda guarda certa dose de normalidade.

“O que mais me fascina é a dúvida. Como saber se a memória é real ou se inventamos imagens, fatos, cores, etc. para darmos sentido a alguma coisa”, explica Machado. “tem uma relação também com meu tema-mote, com meu projeto maior de literatura que é a voz do outro, ou seja, somos a construção de diversas outras vozes, e isso nos torna únicos e diferentes. Incorporamos elementos da forma que conseguimos e os transformamos. Por isso a memória é intrigante.”

Em livros anteriores – como Poeira fria, em que o narrador ainda vive sobre os escombros de uma relação que acabou, e Olhos de sal, um manual sobre o impasse da incomunicabilidade –, Machado já investigava sobre o vazio e a fuga da realidade. Por acaso memória maximiza a experiência. Olavo, que abandona o Norte após se envolver em um esquema de tráfico de madeira, passa a existir em um fluxo de consciência à la Patrick Modiano – escritor francês Nobel de Literatura, em 2014 –, metamorfoseado em um pescador no litoral sul.

Não é exagero dizer que Machado e Modiano operam no mesmo sistema: seus personagens são exilados, vivem em não-lugares e em espaços míticos. São apátridas, párias, em seus próprios países. As múltiplas camadas de Por acaso memória dão a liga que une as histórias de Olavo e Teresa com Joana, cuja vida se tornou uma imensidão de cartas e linhas tortas.

Caras-pintadas

Collor foi um intermezzo entre a ditadura e a democracia. Apesar dos estragos feitos pelo primeiro presidente eleito nas urnas após o fim do regime militar, Collor ainda está apagado na literatura. O confisco da poupança, a inflação, o desespero e os suicídios são pouco lembrados na ficção. Carlos Machado, com inteligência e certo ineditismo, joga luz sobre esses fatos.

“Eu tinha 15 anos quando os caras-pintadas saíram às ruas, passaram pela escola onde eu estava e me levaram para gritar contra o presidente. Esse dia me impressionou tanto que sempre guardei essa história em minha memória”, comenta o escritor. “Portanto, nada mais natural do que em algum livro meu, revisitar essa memória, ressignificar essa história.”

Olavo, Teresa e Joana são a metáfora do país quebradiço, que se despedaça a cada ano em meio às esperanças perdidas. Na construção de uma narrativa sólida e plurilíngue, como diz Paulo Venturelli no texto de quarta capa, Carlos Machado escreve um livro atual e necessário, mas que não se prende na urgência falha no imediatismo que tem assolado a literatura brasileira.

Por acaso memória é a consolidação de um projeto literário que busca no outro – na voz do outro – a chave para encontrar a si mesmo. É um exercício de uma narrativa-limite para um país que vive na corda-bamba e que já não consegue mais se enxergar como nação.

Serviço

Por acaso memória

Carlos Machado

Arte & Letra | 74 p.

Disponível em: https://bit.ly/PorAcasoMemoria

Sobre o autor

Carlos Machado nasceu em Curitiba, em 1977. É escritor, músico e professor de literatura. Publicou os livros A voz do outro (contos 2004, ed. 7Letras), Nós da província: diálogo com o carbono (contos 2005, ed. 7Letras), Balada de uma retina sul-americana(novela 2006 e 2a ed. Revisitada 2021, ed. 7Letras), Poeira fria (novela 2012, ed. Arte & Letra), Passeios (contos 2016, ed. 7Letras), Esquina da minha rua (novela 2018, ed. 7Letras),  Era o vento (contos 2019, Ed. Patuá), Olhos de sal (Novela 2020, ed. 7letras) e Por acaso memória (narrativa 2021, ed. Arte & Letra). Tem contos e outros textos publicados em diversas revistas e jornais literários (Revista Oroboro, Revista Ficções, Revista Ideias, Revista Philos, Revista Arte e Letra, Jornal Rascunho, Jornal Cândido, Jornal RevelO etc.). Participou das antologias 48 Contos Paranaenses, organizada por Luiz Ruffato e Mágica no Absurdo, organizada para o evento Curitiba Literária 2018, curadoria de Rogério Pereira, entre outras. Integrou as listas de finalistas do concurso “Off Flip” 2019 e 2021, semifinalista no “IV Prêmio Guarulhos de Literatura” (2020), venceu o prêmio/edital “Outras Palavras”, da Secretaria da Comunicação da Cultura do Paraná (Lei Aldir Blanc) em 2020, 2o lugar no “Concurso Literário da UBE-RJ” (União Brasileira de Escritores do RJ), 2021, com o livro de contos Era o vento, finalista no “15o Concurso Nacional de Contos Josué Guimarães” 2021, com o conto “Colorir e descolorir” entre outros. Foi curador de diversos concursos literários como “Coletânea de Contos Infantis” do SESC-PR, 2021 e “I Concurso Franklin Casca”, UFSC, 2021. Como músico, entre diversos trabalhos, tem 6 CDs autorais lançados.

Site: www.carlosmachadooficial.com

Instagram: @carlosmachadooficial

Enviado por Jonatan Silva / Jornalista

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