ENTREVISTA ESPECIAL COM O TROMPETISTA DA OSESP, FERNANDO DISSENHA.
Natural de São José dos Pinhais, Fernando Dissenha é trompete-solo da Osesp (Orquestra Sinfônica de São Paulo) há quase 25 anos. Doutor pela Universidade de São Paulo e Mestre pela Juilliard School, Dissenha realizou turnês pelo Brasil, América Latina, Estados Unidos, Europa e Ásia, além de diversas gravações pelos selos Bis, Naxos e Chandos.
Como camerista, Fernando Dissenha integra o Quinteto de Metais São Paulo, que já realizou apresentações no Festival Lake Luzerne (EUA) e gravou o CD Música Brasileira para Quinteto de Metais. Nos Estados Unidos, Dissenha foi solista da New York String Orchestra (Carnegie Hall), e da Juilliard Orchestra (Alice Tully Hall).
Fernando Dissenha já ministrou cursos e masterclasses na Universidade de Maryland (EUA), em Medellín (Colômbia), e nos principais festivais de música do Brasil. Atualmente integra o corpo docente da Academia de Música da Osesp. Atuou também como professor de trompete na Faculdade Cantareira, Escola de Música e Belas Artes do Paraná (Embap/Unespar), Escola de Música do Estado de São Paulo (EMESP) e no Conservatório de Tatuí.
No Brasil, Fernando Dissenha foi aluno de Edgar Batista dos Santos (São Paulo), Antônio Aparício Guimarães (Curitiba), e Pedro Vital, na Banda do Rotary International de sua cidade natal.
A seguir, a entrevista de Fernando Dissenha realizada por e-mail. Importante ressaltar que algumas perguntas foram inspiradas nas entrevistas do músico e youtuber Leopoldo Artuzo (Canal Leopoldo Artuzo Trompete).
Katia Velo – Você iniciou o contato com a música não com o trompete e sim com a flauta doce? É sempre um caminho mais comum devido a facilidade em manusear e ter acesso a este instrumento? Ou por que o trompete exige muito esforço para uma criança?
Fernando Dissenha – O início com a flauta doce foi muito importante para mim, pois aprendi a leitura musical, a gostar do som e das melodias simples que tocava. Trata-se de um instrumento muito adequado para a iniciação musical de crianças. O trompete pode – e deve – ser iniciado tão logo a criança tenha os dentes definitivos. Essa seria o único cuidado a ser observado. Com um bom professor, uma criança pode ter um desenvolvimento musical rápido e produtivo com o trompete.
KV – Quando e como ocorreu sua escolha pelo trompete?
FD – Quando era criança, eu assistia o Muppet Show, e no programa tinha um saxofonista – o Zoot – que eu gostava muito. Por volta dos 10 anos de idade, eu fui à Banda do Rotary e procurei pelo sax, mas daí ouvi alguém tocando outro instrumento cujo som me deixou absolutamente impressionado. Era o som do trompete, e foi paixão à primeira audição. Eu tinha 10 anos de idade.
KV – Como foi a sua passagem pela Banda do Rotary de São José dos Pinhais? Você acha que é um bom caminho para alguém aprender música, ou seria mais adequado a iniciação musical mais cedo?
FD – A Banda do Rotary de São José dos Pinhais foi essencial no meu desenvolvimento artístico por diversos motivos. Em primeiro lugar, pela prática musical. Aprender e tocar o repertório era divertido e desafiador. E fiz isso aos 10 anos de idade, logo que ingressei na banda. A flauta doce ajudou muito, mas com o trompete eu tinha novos desafios. Era um outro instrumento, com suas dificuldades e peculiaridades. Em segundo lugar, destaco a disciplina que obrigatoriamente foi desenvolvida. A banda participava de concursos em que – além da música – eram avaliados itens como a marcha, a postura e o alinhamento. Treinávamos para cumprir essas exigências com seriedade. Por fim, destaco o contato social saudável que tive com os colegas e os laços de amizade criados, inclusive com as famílias de diversos músicos da banda. Isso foi muito bom para o meu desenvolvimento, pois eu era uma criança introvertida. Foi um período muito bom da minha vida.
KV – A música erudita tem um poder incrível, mas infelizmente, muitos jovens nem ouvem e já dizem que não gostam. Qual seria a sua sugestão para mudar um pouco este cenário?
FD – Por várias décadas, essa é uma questão que preocupa o ambiente “erudito”. Uma forma de solucionar essa dificuldade de acesso é trazer crianças para as salas de concerto. Elas serão o público do futuro e devem ter contato com a linguagem musical dos compositores “eruditos”. Não basta, porém, simplesmente encher as salas de concerto com as crianças para ouvir obras que, inicialmente, podem ser de difícil compreensão. É preciso prepará-las na escola ou em casa para esta experiencia artística. Explicar o que é a música de concerto e contextualizar suas diferenças é fundamental. Como qualquer outro estilo musical, a música que fazemos nas salas de concerto tem peculiaridades que a distinguem e que fazem dela especial. Felizmente, já existem boas experiências nesse sentido na Europa, nos Estados Unidos, na Ásia e no Brasil. A batalha que nós músicos temos é grande para aproximar o público da nossa arte.
KV – No filme Whiplash – Em Busca da Perfeição há um personagem representado por um professor extremamente difícil, diria que um carrasco, pois segundo ele só assim poderia extrair o melhor do aluno. Ele ressalta a ideia de que um bom trabalho só não basta. A música exige mesmo muita dedicação e disciplina, mas será que o caminho tem que ser tão difícil?
FD – Eu fiquei absolutamente perturbado com esse filme. O que o suposto professor do filme faz é assédio moral. Simples assim. Não existiria uma única escola de música que aceitaria um sujeito com tamanho desequilíbrio, pois a música jamais pode acontecer sob pressão ou tortura psicológica. Dito isso, tenho receio que a geração que hoje cresce – influenciada pelo poder absurdo das redes sociais – terá dificuldades para se dedicar ao aprendizado sério de um instrumento musical. A música – ou qualquer outra atividade que demande muita prática – requer disciplina e paciência. O imediatismo que observamos hoje com os jovens nada combina com o processo longo para se obter excelência em qualquer área de atuação. Um grande professor tem que achar um equilíbrio entre a disciplina e o trabalho sério – essências para o desenvolvimento musical – mas sempre com respeito ao indivíduo e sua velocidade de aprendizado.
KV – Você acredita que a mudança de Curitiba para São Paulo para ingressar na Osesp foi um divisor de águas na sua carreira? Você conseguiu se adaptar a agitação de São Paulo? Porque eu sou paulistana e nunca me acostumei.
FD – A vinda para São Paulo mudou completamente a minha vida, em todos os sentidos. Moro aqui desde 1997, e minha filha e meu filho são paulistanos legítimos. Gosto da seriedade e do respeito que os paulistanos têm com relação ao trabalho. Mas amo imensamente o Paraná e tenho muita saudade de Curitiba, de assistir jogos na Arena da Baixada e, principalmente, de São José dos Pinhais. A cidade de São Paulo está associada ao trabalho, produtividade e responsabilidade. A Osesp é um bom exemplo disso. Mesmo em época de pandemia, tivemos semanas com seis concertos. A cadeira que ocupo de 1º trompete envolve pressão, algumas vezes, muito intensa. Ao longo de tantos anos, isso se torna até motivador. É isso que me faz, por exemplo, estudar durante o Natal e Ano Novo um repertório que já toquei diversas vezes na orquestra. Minha esperança – nem sempre concretizada – é que da próxima vez, eu possa tocar um pouco melhor. Se acostumar com São Paulo? Não, sem chance, especialmente para um paranaense como eu!
KV – Há vários projetos sociais que envolvem a música. Cito dois para o conhecimento dos leitores: a Orquestra Sinfônica de Heliópolis, da favela de mesmo nome, uma das maiores de São Paulo fundada pelo maestro Silvio Baccarelli (Instituto Bacarelli) e o El Sistema na Venezuela, conhecido e reconhecido mundialmente, tendo na figura do maestro Gustavo Dudamel um ícone. Você acredita que a música pode ter efeito transformador na vida das pessoas?
FD – Sim, a música transforma a vida das pessoas. Como citei anteriormente, uma pessoa adquire cultura, conhecimento, disciplina, respeito e perseverança quando exposta ao aprendizado musical e seus desafios. Alguns têm o privilégio – como eu tenho – de poder escolher a música como profissão. Porém, mesmo que alguém opte por fazer outra atividade, certamente, a música trará benefícios para a sua vida.
KV – A pandemia provocou forçosamente uma grande mudança em todos os setores. Acredito que muitas delas serão aplicáveis pós-pandemia. No entanto, a magia que há nas apresentações ao vivo, principalmente em concertos nos traz uma lacuna entre o real e o virtual. Em sua opinião, quais alterações deverão acontecer?
FD – Esse também é um ponto muito interessante a ser analisado. Tenho respeito a todos que muito se esforçaram para produzir as lives – simulando concertos e apresentações ao vivo. Acredito, porém, que isso não representa o que realmente fazemos. A energia de um concerto ao vivo jamais pode ser reproduzida, mesmo em transmissões de altíssima qualidade. Eu já defendia isso antes da pandemia para os meus alunos, incentivando todos a ouvirem concertos ao vivo. Respeito as limitações feitas pelas autoridades durante a pandemia, mas infelizmente percebo que houve um excesso, especialmente no que se refere às restrições impostas aos concertos ao vivo. No caso dos instrumentos de metal, revelou-se muito desconhecimento científico. Vimos músicos colocando aparatos para suprimir os possíveis jatos de saliva que supostamente sairiam do instrumento. A verdadeira ciência, porém, nos ensina que o som se propaga por vibração do ar. Como resultado destes exageros pseudocientíficos, temos seríssimos problemas com colegas músicos e orquestras que, desde março de 2020, não estão atuando. Não se trata somente de questões financeiras, mas também a saúde psicológica destes artistas. Para mim foi um alívio quando, a partir de julho – ainda sem público – a Osesp voltou a tocar. O nosso lugar é o palco e, felizmente, já temos o público de volta à Sala São Paulo. Não vejo problema algum – respeitadas as regras estabelecidas e protocolos de saúde – em ter público presente nos concertos. Trancar as salas de concerto afeta a vida de milhares de pessoas que trabalham com a música, além de ferir o direito das pessoas que querem e/ou precisam assistir a um concerto para o seu próprio bem estar emocional.
KV – Certamente há momentos memoráveis em suas apresentações. Você poderia indicar alguns?
FD – Eu jamais imaginaria que a música poderia me levar a tantos lugares e a conhecer pessoas incríveis ao longo desses anos. Eu me sinto absolutamente abençoado com todas essas experiências. A lista de momentos memoráveis é grande, mas cito alguns: a inauguração da Sala São Paulo, sob a regência do maestro John Neschling; a gravação da obra Petrouchka de Stravinsky, com o maestro Yan Pascal Tortelier; os concertos e a gravação da Sinfonia Alpina de Richard Strauss, com o maestro Frank Shipway; e os concertos no Proms (Royal Albert Hall, de Londres), as performances da 3ª Sinfonia de Mahler, e as turnês pela Europa e China com a maestrina Marin Alsop.
KV – Há alguma previsão ou mesmo possibilidade de você apresentar-se em São José dos Pinhais?
FD – Adoraria tocar em São José dos Pinhais com a Osesp ou em um recital. Por enquanto, aguardamos todos o fim da pandemia para que tudo volte ao normal, e a música – em apresentações ao vivo – traga novamente alegria ao público.
Parabéns, ótima entrevista , séria, reflexiva e fundamentada .
Um grande professor, um excelente trompetista, um abraço ao grande Fernando Dissenha!!!