ENTREVISTA – MARIA ANGELICA MAROCHI
A historiadora, escritora e professora aposentada, Maria Angelica Marochi, é uma das pessoas mais cultas da cidade de São José dos Pinhais, além de uma pesquisadora incansável. A cidade de São José dos Pinhais está em pleno desenvolvimento, mas ainda preserva características muito pitorescas. Maria Angélica por meio de um trabalho hercúleo, vem resgatando a história, cultura, política entre outros temas. Em seu novo livro “Ordem e Poder” a escritora busca trazer informações diversas a respeito de como foi o início da colonização portuguesa em terras são-joseenses e, ao longo dos anos, como foi a formação e composição desta população. No final, é feita uma pequena reflexão a respeito dos dias atuais ou qual seria identidade cultural dos são-joseenses. A seguir, entrevista concedida ao Professor de História, Celso Andrei Rocha especificamente sobre o livro
CELSO ANDREI ROCHA – No processo de criação do livro, organização de capítulos, por exemplo, você seguiu as informações que conseguiu com as fontes, ou seu estudo foi direcionado e as fontes entraram posteriormente?
MARIA ANGELICA MAROCHI – Até hoje, todo livro que escrevi foi construído baseado em um projeto inicial. No caso do livro “Ordem e Poder” foram anos de pesquisas em diferentes fontes obtidas em documentos de vários arquivos e com a história oral. A proposta foi buscar identificar a construção da Ordem por meio de leis que normatizaram o poder local. Todas as unidades e subunidades buscam refletir a respeito de quem fez e faz as leis em São José dos Pinhais. Os textos sempre levam a uma reflexão verificando se as leis existiram ou existem para atender o coletivo ou apenas um segmento da sociedade. O que há nas entrelinhas das leis? Quanto ao Poder, a linha de pensamento não foi diferente. Como ele aparece em São José dos Pinhais? Como ele se apresenta nos dias atuais? Qual foi e qual é o modo de pensar e agir dos governantes? Quais os seus valores na relação entre a palavra e o ato?
CAR – No capítulo 5, no qual trata do surgimento e organização da administração de São José dos Pinhais, percebe-se a dificuldade em precisar uma data da fundação, por conta da escassez das fontes. Segundo seus estudos, tal problema se dá pela falta de registro ou pela perda de documentos?
MAM – Acho que você aqui se refere à subunidade cinco. Em SJP, como em centenas de outros municípios brasileiros nunca houve uma “fundação” no sentido formal da palavra. O texto procura explicar. Tudo aqui começou dentro de um longo processo de ocupação pelos europeus. Primeiramente, foi tudo de forma desordenada quando do surgimento do Arraial Grande. Depois, um pouco mais organizado, o local passa a ser uma freguesia do município de Curitiba. As primeiras leis locais surgem no ano de 1721. Tudo isso está explicado na primeira unidade: “Das leis portuguesas às do governo brasileiro”. Agora, temos sim certas dificuldades de fontes primárias para tal trabalho. Por exemplo, todos os documentos que tratam da inauguração do primeiro espaço oficial do governo português em São José, que foi a Capela do Senhor Bom Jesus dos Perdões, apenas mencionam que ela teria sido inaugurada em 1690, não mencionando o mês e o dia. (ver página 35). É complicado obter maiores informações sobre a ocupação portuguesa dos séculos XVII e início do XVIII. Os documentos se encontram nos arquivos do governo de São Paulo, na Câmara Municipal de Curitiba ou no acervo histórico da Catedral de São José. Nem sempre você acha a resposta que procura.
CAR – Para escrever o livro você cita diversas fontes relacionadas à administração pública do município. Você teve dificuldade para acessar esses documentos?
MAM -Sim. Dentro de São José é fácil pesquisar o acervo documental que se encontra no Museu Municipal, pois lá existe uma boa organização. No entanto, infelizmente, no Arquivo Público Municipal, um acervo histórico muito precioso, nós historiadores não temos acesso desde o ano de 2010. Por meio de uma ação não pensada, o prefeito da época resolveu terceirizar os serviços gerais do arquivo, inclusive a parte histórica. A empresa que “ganhou” a licitação armazenou tudo em um barracão no interior do município de Araucária. Tudo foi feito fora da legislação municipal em vigor e desrespeitando as normas técnicas. É um crime. Um absurdo total. No livro, em vários momentos, em especial nas notas de rodapé, menciono e critico tal realidade. (ver notas nas páginas 192, 226, 397, 399 e outras). Nada jamais poderia ter saído de nosso município. O arquivo da velha Igreja Matriz de SJP é muito importante, pois Igreja Católica e o Estado formavam uma única administração. Assim, em 2006, já conseguimos seu tombamento como patrimônio cultural de nosso município. Nesse arquivo obtive muitas informações. Fora de São José trabalhei muito tempo lendo documentos da Câmara Municipal de Curitiba e do Arquivo Público do Estado do Estado do Paraná. Pouquíssimos documentos, como leis da Província do Paraná ou Estado do Paraná começam aparecer na internet. Mas toda a correspondência enviada ou recebida de São José lá está arquivada aguardando a informatização. Documentos mais antigos do poder público local como os do século XIX, se não achar cópia em Curitiba aqui não se acha, pois foram destruídos pelo poder público em sua maioria.
CAR – No sul do país é notável a participação dos europeus no processo de colonização. Em São José dos Pinhais não foi diferente. Como você vê a participação deste grupo ao longo dos tempos no desenvolvimento cultural e socioeconômico?
MAM -Todo o trabalho de construção de nossa história por parte dos europeus, portugueses ou não, eu procurei apresentar em dois outros livros. O mais detalhado deles foi o livro “IMIGRANTES: Os europeus em São José dos Pinhais – 1870 -1950”. Ali aparece uma profunda análise da participação dos diferentes grupos na economia local. No livro “História & Memória: a busca pela construção de uma identidade de São José dos Pinhais” buscou-se identificar a composição da população e a ação dos diferentes grupos no processo de construção de nossa sociedade. Pessoas de descendência indígena, africana ou europeia de diferentes países, além de Portugal, deixaram seu legado em nossa sociedade.
CAR -Desde os primórdios São José foi muito extenso e grande parte da economia girou em torno da agricultura produzida nas colônias no interior do município. A ligação com o centro nem sempre foi fácil. Quais as dificuldades e deficiências que você vê no desenvolvimento do município por conta disso?
MAM -Novamente sugiro a leitura do livro IMIGRANTES, principalmente os depoimentos dos entrevistados pertencentes às diferentes colônias agrícolas criadas no final do século XIX e início do século seguinte. Anterior, ou no século XVIII, as dificuldades eram ainda maiores. Nós não tínhamos colônias agrícolas mais organizadas e a produção era somente para a subsistência dos moradores. No entanto, até o início do século XX, a demanda do mercado externo era também um fator que atingia todos os produtores. Atualmente, certas comunidades ainda enfrentam dificuldades de locomoção, mas bem menores que no passado.
CAR -No seu livro quando fala da arrecadação de impostos cita a cobrança sob o emplacamento de bicicletas, por conta de que a arrecadação era pouca no município. Isto sem dúvida limitava a administração. Você acredita que poderiam ser tomadas outras medidas no passado a fim de aumentar a arrecadação?
MAM -Durante toda a primeira metade do século passado o município viveu mais da agricultura e a arrecadação do serviço público era precária. Assim, as autoridades locais buscavam formas alternativas, até consideradas absurdas para os dias atuais, de como arrecadar impostos. É o caso do emplacamento de cães. Nas leituras dos diversos documentos analisados, como relatórios do governo paranaense, percebi que São José, mais por razões de ordem política, se manteve as margens do desenvolvimento econômico. Teria faltado por parte das autoridades locais uma relação mais próxima com os governantes do Estado? As várias citações do livro buscam uma reflexão a respeito.
CAR -Até os dias de hoje pouca coisa foi explorada na historiografia de S.J.P. Como você vê esse trabalho no futuro?
MAM -Conheço muitos jovens estudantes universitários interessados em realizar pesquisas históricas. No entanto, não é um trabalho fácil, pois demanda muito tempo. São horas e horas que você deve permanecer manuseando os velhos documentos. Então, se não há incentivo financeiro eles desistem, pois precisam ter um trabalho remunerado. No meu caso sou eu que banco toda a produção de meus livros. O custo é altíssimo e o retorno insignificante. Costumo dizer que os documentos se encontram lá nos arquivos pedindo para serem conhecidos, revisitados e relidos com novos olhares. Mas fico um pouco triste quando vejo certas publicações locais que tentam explicar nosso passado nos meios de comunicação, como na internet, jornais ou revistas. Elas aparecem sem pesquisas em documentos locais ou em fontes sérias e seus autores publicam uma série de informações erradas sobre o nosso município. Para muitos, infelizmente, é mais fácil inventar informações sem utilizar fontes sérias. E no futuro? Devemos ter esperanças que nossos governantes mudem e ofereçam um apoio maior aos pesquisadores.
CAR – Em sua obra você lança a seguinte pergunta: “Em São José dos Pinhais o poder político e administrativo existe a favor dos interesses da população como um todo ou apenas serve para atender o pequeno grupo que chega ao poder?”
MAM – Ainda no início do trabalho sugeri ao leitor a realização de uma leitura pontual. Nas considerações finais (páginas 601 até 606) o texto busca fazer o leitor realizar a sua conclusão a respeito da participação efetiva da população em geral na atual construção da ordem e do poder local. O Plano Diretor de 2015 menciona a “Gestão Pública Democrática”. E eu pergunto se ela existe ou aparece somente nos discursos. Gostaria de saber da opinião dos leitores e leitoras.
MAIORES INFORMAÇÕES:
MARIA ANGÉLICA MAROCHI nasceu no município de São José dos Pinhais, onde sempre residiu e estudou até o final do Ensino Médio. Na Universidade Federal do Paraná conclui os cursos de História e Pedagogia, seguidos de vários outros cursos de aperfeiçoamento, extensão universitária e pós-graduação. Boa parte de sua vida profissional foi dedicada ao magistério da rede de ensino do Estado do Paraná.
Em Curitiba, por doze anos, atuou na Secretaria Estadual de Educação do Estado do Paraná, local em que desempenhou várias funções pedagógicas, principalmente as ligadas ao Ensino da História, sendo docente em vários cursos realizados para professores de diferentes municípios paranaenses. Por vários anos, em uma empresa de ensino particular, prestou serviços na elaboração e revisão de material didático destinado ao ensino da história de escolas de diversos estados brasileiros.
No município de São José dos Pinhais atuou como professora ou coordenadora pedagógica em diversas escolas. De 1985 a 1988, coordenou o sistema estadual de ensino local quando ocupou o cargo de Inspetora Estadual de Ensino, período no qual ocorreram diversas modificações inovadoras nas propostas pedagógicas e de gestão escolar nas escolas do município. No ano seguinte, em 1989, ocupou o cargo de diretora do Departamento Pedagógico da Secretaria Municipal de Educação.
Preocupada com a área da preservação cultural de São José dos Pinhais, entre os anos de 1997 e 2012, participou do Conselho Municipal do Patrimônio Cultural – COMPAC. Por sua iniciativa, um fato inovador, conseguiu o tombamento como patrimônio cultural do município de todo o acervo documental da Igreja Matriz de São José dos Pinhais – séculos XVIII a XX. E ainda, ao lado de outros são-joseenses buscou a preservação cultural de vários bens imóveis do município, hoje muitos deles tombados como patrimônio cultural.
Nos últimos anos, dedica boa parte de seu tempo às pesquisas de diferentes temas que tratam da construção da história São José dos Pinhais. É um trabalho de resgate de documentação antiga e da memória viva ou da história oral, registrando as lembranças do passado e presente vividos por muitos são-joseenses. Até o presente publicou oito livros, sendo sete deles dedicados a diferentes temas a respeito da história de São José dos Pinhais. Entre as obras que tratam da formação da sociedade são-joseense destacam-se:
- IMIGRANTES – os europeus em São José dos Pinhais 1870 – 1950 (3ª edição – 2013);
- DE FREGUESIA A DIOCESE – a trajetória da Igreja Católica em São José dos Pinhais 1690 – 2007. (2007)
- UMA HISTÓRIA DE ESPERANÇA: entre o nascer e o morrer: documentos oficiais e de memórias da religiosidade e da cultura em São José dos Pinhais. (2011);
- HISTÓRIA & MEMÓRIA: a busca pela construção de uma identidade de São José dos Pinhais (2014);
- ORDEM & PODER: uma ideia de construção da vida política e administrativa de São José dos Pinhais (2017).
Sempre muito bom saber mais sobre história de SJP através da Maria Angélica. Aliás só através dela existe essa historia. Obrigado por seu trabalho.
Maria Angélica, graças à sua perseverança e pesquisas temos o prazer de encontrar fatos relatados em seus livros dos nossos antepassados, conhecer a história de nossa querida cidade. Parabéns, e concordo que deveria ter mais empenho das autoridades para desenvolver um trabalho nas escolas sobre a história do nosso Município e preservação dos documentos.
Cara Célia! Agradeço a sua valiosa contribuição no comentário. Abraço, Katia Velo
Caro Francisco! Obrigada pelo depoimento. A Maria Angelica merece nosso reconhecimento. Obrigada, Katia